História do Brasil
Já
faz muito tempo que os europeus chegaram aqui e trouxeram sua cultura com
objetivo de ensiná-la aos autóctones, porque entendiam que seu modo de ver o
mundo era superior. Hoje sabemos que isso não é correto, que devemos respeitar
todas as culturas, considerando o respeito à pessoa humana, algo presente na
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas o conflito entre o que é
universal e o que é particular permanece em nossos dias. Um exemplo bem
interessante é a questão dos direitos dos animais. Em nossa sociedade,
inclusive, existe um debate em torno da utilização de animais em eventos
festivos. A Vaquejada é um evento cultural que tem origem no nordeste
brasileiro e tem sido alvo de muito debate em virtude dos maus tratos aos
animais. Trata-se de uma competição onde duas pessoas montadas a cavalo devem
derrubar um boi entre duas faixas de cal, uma substância branca utilizada para
pintar um determinado local. Essa prática cultural, muito popular em nosso país
durante século XX começou a ser questionada logo no início do século XXI por
pessoas que se preocupam com maus tratos aos animais, porque para derrubar o
animal os vaqueiros o puxavam pelo rabo lhe proporcionando dores. Apesar do
questionamento sobre a submissão do animal a situações de dor, o governo
brasileiro, através da lei número 13.364, no dia 29/09/2016 considerou a
Vaquejada uma manifestação cultural nacional e de patrimônio cultural
imaterial, por se tratar de uma prática cultural. Podemos definir patrimônio as
características de um grupo social, que pode ser material ou imaterial.
Como patrimônio material podemos considerar as construções
físicas, como templos religiosos, mercados e praças, quando possuem significado
histórico e social. Possuir significado histórico é fundamental porque define a
identidade do grupo social. No Brasil, com objetivo de organização e
preservação do patrimônio cultural, foi criado o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
O
conflito que existe hoje é resultado de transformações proporcionadas
pela Terceira Revolução Industrial, que através da internet tornou
possível a aproximação entre pessoas de diversos lugares do mundo. Essa redução
de tempo e espaço concretizada pela tecnologia da informação fez com que as
pessoas começassem a questionar suas culturas locais e pudessem se juntar para
construir um debate em torno do que seria “melhor” para a humanidade, pensando
numa perspectiva global. Essa proposta de universalidade,
fortalecida pela união das pessoas em movimentos sociais organizados por meio
da internet, encontrou resistência no que diz respeito às particularidades das
culturas locais. Isso significa que as regiões possuíam identidades culturais,
como o caso da Vaquejada no Brasil, que foram questionadas pelos movimentos
sociais.
Os movimentos
sociais, fortalecidos pela internet, possuem como objetivo estabelecer
direitos considerados universais, isto é, válidos para todos os seres que vivem
em nosso planeta. As pessoas que fazem parte dos movimentos sociais são
chamadas de ativistas. Para alcançar seus objetivos os ativistas se
organizam para intervir nas decisões políticas em diversos países,
representando necessidades específicas de alguns grupos sociais, além da
preservação do meio ambiente e direitos dos animais.
Trabalho
escravo na sociedade brasileira
Na
época da colonização os europeus não tiveram conflitos somente com os índios,
que eram nativos da terra. Houve também a construção de uma relação de muito
conflito com os africanos, que foram capturados e trazidos como escravos para
trabalharem em nosso país. Os escravos eram transportados em navios e muitos
não resistiam à viagem, devidos às péssimas condições em que viajavam. Os
escravos não eram conformados com a realidade em que viviam e se organizavam em
quilombos para fugir dos maus tratos dos senhores de engenho. A escravidão
chegou ao fim em virtude da mudança que aconteceu na Europa nas relações de
produção. Com a sociedade de mercado, também conhecida como capitalismo, era
preciso que o trabalho fosse livre e assalariado. E foi nesse contexto
histórico que os escravos foram libertos. Teria sido muito bom se nesse
processo as pessoas libertas tivessem recebido algum apoio do Estado brasileiro
para participarem da nova era do trabalho no Brasil, livre e assalariado.
Quando se viram livres, os ex-escravizados não tinham onde morar, onde
trabalhar e, por isso, alguns desejavam voltar a serem escravos. Além disso, o
Estado brasileiro promoveu a imigração europeia. Os europeus eram convidados a
viver no Brasil e participar da sociedade de mercado que aqui se formava, de
acordo com os princípios liberais. Esse processo intensificou a exclusão dos
ex-escravizados.
De
acordo com a ideologia liberal do mundo do trabalho as pessoas deveriam ser
livres para através do próprio trabalho conquistarem o que precisam. Na
sociedade brasileira o liberalismo foi bem sucedido em relação ao investimento
na produção, com a compra de máquinas, por exemplo. Mas para que o liberalismo
acontecesse de fato seria indispensável que as premissas liberais nas relações
de poder também fossem concretizadas. Tais princípios podem ser compreendidos a
partir da relação entre os interesses privados e os interesses públicos na
sociedade. Aqui não houve o desenvolvimento de relações de poder comprometidas
com o interesse público de modo que envolvesse a totalidade da população
habitante do território nacional. O que se verifica é a construção de uma elite
política que administra as instituições oficiais de poder de acordo com seus
interesses privados, o que é popularmente conhecido como corrupção, que se
constitui em desonestidade.
Em
todas as sociedades humanas existe um processo através do qual os mais jovens
são educados. No Brasil esse processo tem início na família e continua através
das demais instituições sociais, como a escola, por exemplo. Os conteúdos que
as crianças e jovens aprendem nas escolas brasileiras são organizados por uma
instituição oficial de poder, isto é, vinculada
ao governo do país. O ministério da educação define quais conteúdos serão
ensinados aos alunos nas escolas em todo o território nacional. A
importância da educação escolar é indiscutível porque se desejamos que exista
meritocracia em nossa sociedade, que é um princípio liberal, as pessoas
devem ter oportunidade de desenvolver a competência técnica necessária para
competir e melhorar sua posição social na sociedade de classes sociais, que
fazem parte da sociedade de mercado, isto é, capitalista.
Formação das elites
brasileiras
Para
entendermos o cenário político brasileiro da atualidade é indispensável o
conhecimento do desenvolvimento das relações de poder construídas a partir da
passagem do trabalho escravo para o trabalho livre e assalariado, quando a
ideologia liberal chegou em nossa sociedade. Um importante cientista político,
sociólogo, historiador e membro da Academia Brasileira de Letras, Raymundo
Faoro, escreveu em sua obra Os donos do poder, publicada em
1958, sobre o modo como se formou no Brasil uma organização
sociopolítica patrimonialista.
O
trabalho livre e assalariado faz parte da organização da sociedade de mercado,
também conhecida como capitalista. Para que o ele tivesse sucesso
em nossa sociedade seria necessário que se desenvolvesse uma sociedade
organizada a partir da formação de classes sociais, onde
houvesse mobilidade social através da competência
técnica e competição. Desse modo se constrói a
meritocracia nas relações entre os indivíduos e a sociedade.
Classe
social é o tipo de estratificação social da sociedade
capitalista, isto é, faz parte da organização da sociedade de mercado.
Estratificação social é o modo como as culturas organizam o que será aceito ou
não na relação entre as pessoas e a sociedade. Como exemplo, podemos considerar
a educação dos mais jovens. Em todas as culturas os mais jovens são educados,
isso faz parte da estrutura social. Mas o modo como será essa
educação chamamos de estratificação social. Sendo assim, entendemos
que numa sociedade capitalista a existência das classes sociais deve ser em
conjunto com a competência técnica e a competição, porque, desse modo, as
pessoas mudarão de classe social por merecimento. Essa relação é pensada por Raymundo
Faoro, a partir do que foi escrito pelo teórico liberal alemão Max
Weber sobre as relações de poder construídas entre a sociedade e o
Estado.
Para
Weber as relações de dominação legítima são divididas de acordo com os motivos
pelos quais as pessoas obedecem. A motivação pode ser irracional ou racional. E
assim ele conclui que a obediência à tradição e ao carisma são
irracionais. Enquanto a obediência ao conjunto de normas e regulamentos
registrados por escrito, como as leis, por exemplo, é racional.
Além disso, o autor destaca que entre as formas de dominação legítima existem
as que são de rotina diária, como a tradicional e a racional-legal;
e a que é temporária, a carismática. Esse tipo de dominação pode
existir em tempos de crise, quando surgem líderes que a população reconhece
como portadores de todas as soluções para os problemas. Esse tipo de dominação
é de momento extraordinário, enquanto durar a crise, porque quando
a sociedade retornar à rotina prevalecerá a relação de dominação tradicional ou racional-legal.
Na
sociedade brasileira, para Faoro, o Estado não teve
compromisso com o desenvolvimento do liberalismo político, de modo que aqui se
desenvolvessem as condições necessárias para que a dominação racional-legal
fosse estabelecida com sucesso, em sua totalidade. Quando dizemos que em uma
sociedade há predomínio da forma de dominação legítima racional-legal
entendemos que pode haver mais de uma forma de dominação e que possui mais
características da dominação predominante. Fazem parte da dominação
racional-legal a impessoalidade e a obediência ao conjunto de normas e
regulamentos registrados por escrito. O melhor exemplo desse tipo de dominação
é a burocracia, que possui características capazes de garantir que em nosso
país exista o desenvolvimento da competência técnica, competição e
meritocracia. A possibilidade de mobilidade social faz parte de uma sociedade
de classes sociais, e deve existir numa sociedade de mercado, ou seja,
capitalista. Essa forma de dominação seria muito boa para o Brasil, uma vez que
aqui estava sendo introduzido o trabalho assalariado livre. As pessoas poderiam
através do trabalho livre e com remuneração conquistar o que julgassem
necessário, tanto para a sobrevivência quanto para a produção de riquezas e, desse
modo, mudar de classe social. As pessoas localizadas em melhores posições
sociais estariam lá por merecimento. Mas no Brasil alguns fatores atrapalharam
o desenvolvimento de uma sociedade de classes sociais. Entre tais fatores é
possível destacar o modo como o interesse público foi submetido ao interesse
privado das pessoas que faziam parte do Estado, que ocupavam os
cargos responsáveis por fazer com que a dominação racional-legal se tornasse
uma realidade, tanto na produção das riquezas, isto é, na economia, quanto nas
demais áreas da vida social, como na educação, por exemplo.
A
educação escolar é um excelente exemplo de como a meritocracia é historicamente
prejudicada na sociedade brasileira. Para compreendermos esse processo podemos
considerar o modo como a educação básica, que inclui o ensino fundamental e
médio, existe na sociedade brasileira. Em nosso território o ensino básico
escolar com qualidade não se encontra disponível para todos os que dele
precisam. Trata-se do ensino capaz de formar jovens com competência técnica
necessária para a competição, promovendo a meritocracia. O fato de nem todos
terem condições de acesso a uma educação com qualidade atrapalha o
desenvolvimento de uma sociedade orientada pelo princípio da meritocracia, ou seja,
liberal. Imagine uma criança que nasce em uma família que não lhe dá meios para
seu desenvolvimento intelectual, obviamente que terá mais dificuldade de
participar da competição do que uma criança nascida em uma família que lhe dá
todos os meios que podem ajudar em seu desenvolvimento intelectual.
Em
nossa sociedade existem muitas pessoas que nascem em estado de muita carência,
o que com frequência impede o desenvolvimento de uma formação escolar que as
torne capazes de participar de modo competitivo no mercado de trabalho. Nesse
sentido as desigualdades podem se transformar em um impedimento para a produção
de riquezas em nossa sociedade. A contribuição do filósofo
norte-americano Jonh Rawls é muito importante para entendermos
a realidade brasileira, porque de acordo com as suas ideias, a escola seria uma
instituição social comprometida com a concretização da cidadania, desde que
fosse laica, ou seja, sem orientação religiosa, e com qualidade, para favorecer
o desenvolvimento do modelo de sociedade de mercado no Brasil. Essa era a
proposta liberal de educação, somada ao trabalho livre e assalariado, em nossa
sociedade.
Para Rawls a
ideia de justiça se encontra relacionada à ideia de igualdade de oportunidades
e garantia de direitos indispensáveis, com objetivo de desenvolver uma
sociedade democrática. A justiça é muito importante porque serve para mediar os
conflitos que existem entre as pessoas na sociedade. Outra questão bem
interessante da obra de Rawls é o valor que ele atribui aos
cidadãos para a construção das regras sociais. Ele considera que os cidadãos
são livres, conscientes e possuem responsabilidade. Um exemplo de
responsabilidade considerado pelo autor diz respeito às pessoas que possuem
filhos. A liberdade dos responsáveis pela criança se encontra relacionada à
responsabilidade e cuidados, de modo igual para homens e mulheres.
Se
a garantia de direitos em uma determinada sociedade for permanente, isto é, se
fizer parte da cultura, a distribuição dos bens disponíveis será justa. Mas
numa situação em que existem cidadãos cujos direitos não estão garantidos,
devem ser criados meios para o acesso de todos aos direitos. Para Rawls é
a própria sociedade quem deve participar da criação dos meios de intervenção, o
que pode ocorrer através de políticas publicas. Essa proposta tem em si a ideia
de que as desigualdades de acesso aos direitos podem favorecer tanto à
corrupção quanto ao desequilíbrio da vida social. Por esse motivo a
redistribuição deveria ser algo com que a população concordasse.
A
educação escolar realizada de acordo com a proposta liberal foi pensada em
1924, com a criação da Associação Brasileira de Educação. Imagine uma sociedade
que fornece aos mais jovens, desde a infância, as condições necessárias para a
que a meritocracia aconteça. Tais condições envolvem a existência de uma
educação escolar que dê oportunidade de competição a todas as crianças,
adolescentes e jovens que vivem em nosso território. O acesso a esse tipo de
educação deve ser garantido por um motivo muito simples, se todos tiverem
oportunidade de competir para alcançar com seu esforço e dedicação o que a
sociedade de mercado tem a oferecer, o indivíduo conquistará seus bens através
do seu trabalho, por mérito, e haverá produção de riquezas na sociedade.
Existem
questões extraescolares que envolvem a relação entre educação e desigualdades
em nossa sociedade. Entre tais questões podemos considerar a precariedade das
políticas públicas relacionadas à habitação, segurança e alimentação da
população que sem encontra em estado de carência múltipla, que Leonie
Sandercock e John Friedman, intelectuais que
estudaram planejamento urbano, definem como despossessão social, política e
psicológica. De acordo com a proposta dos dois autores, existem pessoas que são
impedidas de ter posse de algo na vida em sociedade, isto é, se encontram
dentro de uma organização social desigual. A despossessão psicológica está
relacionada ao sentimento de inferioridade em relação às outras pessoas, com
quais convive na vida em sociedade. A despossessão política ocorre
quando a pessoa se sente incapaz de participar das decisões políticas que
interferem na sua vida e de seus semelhantes. A despossessão social está
presente na dificuldade de acesso aos meios de ascensão social, como uma boa
educação escolar, por exemplo.
No
Brasil a população que se encontra em estado de carência múltipla sente
dificuldade de acesso aos bens indispensáveis à sobrevivência porque, embora
sejam garantidos pela Constituição Federal, estes dependem de políticas
públicas para serem concretizados. O meio que o cidadão brasileiro possui de
ter acesso ao conjunto de direitos civis, políticos e sociais, que são os
princípios da cidadania, é a democracia representativa. Isso significa que o
vínculo entre as pessoas e os direitos que as tornam cidadãs de fato, isto é,
de modo concreto, se localiza no Estado Democrático de Direito. No plano da
idealização todos os brasileiros se encontram contemplados pelo conjunto de
normas e regulamentos registrados por escrito, que existem para garantir que
nenhum cidadão tenha seus direitos negados.
Quando
falamos em conjunto de direitos e redução de desigualdades no Brasil,
encontramos a falta de identificação da população com os princípios do Estado
Democrático de Direito. Isso acontece porque em nosso hábito coletivo existe a
crença de que tanto o sucesso quanto o fracasso dependem quase exclusivamente
do esforço individual das pessoas. Em nossa realidade a população não consegue
identificar o Estado como responsável pelo bom funcionamento da sociedade de
mercado, ou seja, capitalista. Inclusive porque numa sociedade liberal o Estado
é mínimo, ou seja, deve intervir no que diz respeito aos interesses da nação
brasileira em todas as áreas, inclusive a produtiva.
Imagine uma sociedade onde a
meritocracia acontece de fato a partir do esforço individual, considerando que
nossas crianças e jovens possuam suas necessidades
extraescolares atendidas, tais como segurança,
alimentação, assistência médico-hospitalar e habitação. O tema da segurança
está entre os mais discutidos em nossa sociedade. No espaço de debate público é
possível encontrar duas compreensões distintas sobre o tema, de um lado existem
os defensores da “pena morte” concretizada na ação policial; do outro lado se
encontram os que acreditam que a redução da criminalidade acontecerá através da
redução das desigualdades. Estudando história é possível verificar que as duas
propostas tiveram consequências positivas, em sociedades diferentes. Em Nova
Iorque, cidade norte-americana, foi empregada a ação policial de tolerância
zero, e houve redução da criminalidade. Outra cidade que também reduziu seus
índices de criminalidade foi Medellín, localizada na Colômbia.
Em sentido oposto ao da cidade
norte-americana, em Medellín houve investimento em tecnologia, meio ambiente,
transporte e geração de empregos; e também houve redução da criminalidade.
Para
entender a questão da habitação em nossa sociedade é importante conhecer a
história das precárias habitações que são popularmente conhecidas como
“favelas”. Esse estudo se faz necessário porque à medida que os centros urbanos
se desenvolveram durante o século XX, muitas pessoas saíram das áreas rurais do
país para viver nas cidades, em busca de melhores oportunidades de trabalho.
Esse deslocamento promoveu a formação de áreas habitacionais com imensa
precariedade de recursos básicos para a sobrevivência. Entre tais recursos se
encontram a coleta de lixo, saneamento básico e construções com risco de
desabamento.
Os
estudos sobre as “favelas” podem ser encontrados no final do século XIX. Os
pesquisadores que tinham interesse na pesquisa sobre a vida nas cidades e seus
habitantes estudaram os “cortiços”, locais onde moravam as pessoas mais pobres;
tanto trabalhadores quanto quem não trabalhava. Desse modo os cortiços se
tornaram lugares onde além de trabalhadores viviam pessoas desocupadas e
perigosas. Nessa época existia um discurso médico-higienista, que considerava o
cortiço um ambiente onde quem frequentava poderia adquirir doenças e vícios em
coisas ruins, que prejudicariam a vida das pessoas em sociedade. Esse prejuízo
pode ser chamado de desordem social e moral. Já aprendemos que a
moral corresponde ao modo como um grupo social compreende o mundo que o cerca,
nesse sentido se refere à visão de mundo das pessoas na vida em sociedade com
outras pessoas. É desse modo que são construídos os padrões de higiene, beleza
e justiça, por exemplo. As pessoas que viviam nos cortiços compreendiam o mundo
de modo diferente das pessoas que moravam fora deles. É como se hoje fizéssemos
uma comparação entre o modo de viver e compreender o mundo dos moradores das
favelas em relação aos habitantes “do asfalto”, ou seja, todo mundo que não
reside nas favelas. Nesse sentido podemos entender que a favela, cuja origem se
localiza nos cortiços, e o “asfalto”, são ambientes sociais com diferentes
visões de mundo, isto é, com culturas diferentes.
De
acordo com os estudos da socióloga Licia Valladares, no início
do século XX foram criadas medidas administrativas, pelo governo do prefeito
Pereira Passos, entre 1902 e 1906, com objetivo de tornar a cidade mais
civilizada. Tais medidas se concretizaram em reformas que foram desde a criação
de leis impedindo a construção de novos cortiços até a demolição dos que já
existiam. Diante das mudanças realizadas pela prefeitura as pessoas ficaram sem
ter onde morar. Diante da necessidade de encontrar algum tipo de
abrigo, para se proteger dos fenômenos da natureza, por exemplo, as pessoas
foram para os morros construir habitações. A reforma urbana promovida pelo
prefeito Pereira Passos tinha como objetivo tornar a cidade com aparência mais
próxima de Paris, cidade europeia. Além da reforma da cidade do Rio de Janeiro
em sua aparência, também foi realizado, de modo mais amplo, o processo de
imigração europeia, com objetivo de clarear o tom da cor da pele da população.
Nessa época existia a crença de que a sociedade brasileira se desenvolveria
melhor de fosse mais parecida com as sociedades europeias. A reforma promovida
pelo prefeito Francisco Pereira Passos e a imigração europeia foram realizadas
como apoio financeiro do governo federal. A reforma urbana não tornou a cidade
mais “europeia” e deu origem à construção de habitações nos morros e áreas vizinhas
da cidade. Essas construções receberam o nome de favelas. Ainda segundo Valladares,
esta palavra passou a ser utilizada na segunda década do século XX, pela
imprensa para designar as aglomerações pobres, de ocupação ilegal e irregular,
geralmente localizadas em encostas.
Para
a antropóloga Alba Zaluar e o historiador Marcos
Alvito as pessoas que moravam em favelas passaram ser consideradas com
qualidades ruins, porque possuíam hábitos diferentes das pessoas que não
moravam nessas áreas. É também possível verificar que nesses aglomerados
urbanos existe tanta carência que a pobreza dos seus habitantes fica exposta,
assim como o desinteresse do governo em fornecer condições indispensáveis à
sobrevivência a esse grupo social, como saneamento básico, por exemplo.
As
favelas cresceram muito nos anos a partir da segunda metade do século XX,
porque muitas pessoas migraram das regiões menos desenvolvidas do país para os
centros urbanos, principalmente para o Rio de Janeiro e São Paulo. Embora
existissem melhores oportunidades de trabalho, nem todas as pessoas conseguiam
obter remuneração capaz de viver fora das favelas, isto é, no asfalto. Foi
desse modo que as favelas cresceram tanto que os governos não conseguiram
impedir.
Apesar
das diferenças culturais que existem entre os moradores da favela e do asfalto,
as relações não podem ser evitadas, principalmente no que diz respeito ao
trabalho, inclusive porque é das comunidades carentes que se extrai mão obra
farta e barata. Embora ocupassem, no mercado de trabalho, posições consideradas
de menor importância, devido à baixa qualificação profissional, os moradores
das favelas se integraram à vida urbana além das relações de trabalho, como na
produção artística, onde é possível citar a contribuição das Escolas de Samba
para a cultura da sociedade brasileira.
A
participação da vida social urbana dos residentes das favelas não ficou
restrita ao mercado de trabalho, passou ter importância na vida política da
cidade. Segundo Anthony e Elizabeth Leeds, as eleições representam
o momento em que alguém demonstra algum tipo de interesse pelas condições
precárias de sobrevivência dos moradores das comunidades carentes, o que lhes
desperta um tipo de esperança em relação ao futuro. Entre um governo e outro aparecem
algumas melhorias para os moradores que vivem em estado de carência múltipla na
cidade, como o projeto favela-bairro, responsável pela urbanização das
comunidades, que inclui alguns benefícios, tais como a realização de projetos
sociais para a educação escolar de jovens e adultos, qualificação profissional
e geração de renda, combate à violência, obras de infraestrutura, melhoria das
habitações, projeto de assistência médica e hospitalar.
Atualmente
há quem argumente que as favelas representam perigo para a sociedade por causa
da omissão dos governantes, que teriam permitido que crescessem tanto, se
tornando abrigos para facções criminosas, perdendo o controle. As camadas
médias e altas da sociedade reclamam da falta de controle dos governantes, e
cobram uma solução para o problema da violência. Os responsáveis pela solução
do problema, na busca desesperada de atender às reclamações dessas camadas da
sociedade, usa a força policial para combater criminosos nas favelas. Os
moradores que não possuem relação com qualquer atividade criminosa são
prejudicados, e isso afeta muito os mais jovens, que têm aulas suspensas ou
estudam inseridos em conflitos entre policiais e criminosos.
A
educação é um importante aspecto da vida de uma pessoa para a possibilidade de
mobilidade social numa sociedade de classes sociais, como a brasileira. Mas
quando estudamos as desigualdades que existiram durante o século XX e ainda são
verificadas na atualidade, é possível compreender como as pessoas mais pobres
encontraram dificuldades além do ambiente
escolar para estudar e desenvolver a competência técnica necessária
para participar da livre competição na sociedade de mercado, ou seja,
capitalista, que se desenvolveu no Brasil. Nesse sentido a meritocracia
enquanto condição para melhorar a posição social de uma pessoa que vive no
Brasil pode ser questionada, uma vez que as oportunidades são tão desiguais e
diversas que vão desde a dificuldade na relação entre ensino e aprendizagem,
percebida no ambiente escolar, até a precariedade de condições mínimas de
sobrevivência, que envolvem a habitação, segurança, alimentação, transporte,
assistência médica e hospitalar. O questionamento do modo como a questão do
mérito se localiza em nossa sociedade é importante porque favorece a
possibilidade do desenvolvimento da democracia deliberativa.
Para Joshua Cohen, filósofo político norte-americano, a democracia
deliberativa possui como objetivo a realização de debates públicos entre todos
os cidadãos, a fim de buscar o bem comum considerando as desigualdades de
oportunidades.