sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Milícia em Jacarepaguá

O presente trabalho tem seu foco nas relações entre as milícias  armadas - que se estabeleceram em diversas comunidades carentes da cidade do Rio de Janeiro - e a população fluminense, em especial moradora destas comunidades, com enfoque especial na favela Rio das Pedras. Aliado a isso, mostrar a relação da milícia com o poder público e a abordagem midiática que tem pautado as diferentes visões que a população tem sobre as milícias. A partir deste enfoque é que pretendo discutir as condições que propiciaram o surgimento destes grupos de milicianos - conhecidos como uma espécie de grupo de extermínio -, no final da década de 1980, na favela Rio das Pedras, que até hoje é dominada por eles. Pretendo também analisar o estágio atual das relações, mais de trinta anos depois, destes grupos atuando não somente na favela Rio das Pedras, mas em outras favelas do Estado.

O tema tem grande importância devido aos grandes acontecimentos anunciados pela mídia envolvendo milicianos. Muitas análises e pesquisas têm sido feitas sobre o tema. Contudo, destaco o trabalho de Marcelo Tadeu Baumann Burgos, coordenador do Curso de Especialização em Sociologia Política e Cultura da PUC – Rio, quem escreveu A utopia da comunidade: Rio das Pedras, uma favela carioca como uns dos trabalhos que me fizeram escolher as milícias como objeto de estudo, sendo uma referência quando o assunto se trata de Rio das Pedras (BURGOS, 2002). Além disso, existem inúmeras pesquisas acadêmicas e artigos que são realizadas tomando como base o mesmo objeto, relacionando-o à temática urbana, processo de favelização, meios de comunicação e política, não somente em Rio das Pedras, mas, também, em outras favelas.

A produção da imprensa costuma narrar os crimes praticados pelos milicianos e mostrar o envolvimento de agentes públicos com estes grupos. Estas produções jornalísticas em pouco contribuem para o entendimento da formação destes “microestados” dentro das comunidades carentes, ou ainda, da relação entre esses grupos e a população. Esta última é sempre mostrada pelos meios de comunicação como regida pelo medo e pela opressão, o que não corresponde à verdade absoluta. Burgos (2008) mostra muitos discursos de moradores dizendo que Rio das Pedras é um local bom para morar em paz e criar os filhos.

O discurso midiático tem grande influência na mudança do olhar que a população lança sobre estes grupos, que antes eram vistos como uma alternativa ao tráfico. Agora tem sua imagem transformada em oposto. Se antes os aspectos negativos eram compensados e até superados pelos positivos, o jornalismo tende a inverter esta lógica.  Se, por um lado, mostra atitudes das milícias contrárias à vontade da população, que não pode se posicionar por medo de represálias, por outro, como afirma Burgos (2008), a abordagem dos meios de comunicação é muito limitada por não transcender os limites da questão de segurança pública.

Através desta ideia polarizadora, a imprensa documenta a relação entre o Estado e os grupos milicianos através da ótica do conflito permanente, não analisando como se constituiu este relacionamento. Tanto que o poder público se preocupava mais com o combate aos traficantes nas comunidades onde não havia a presença destes grupos, que se tornaram conhecidos pelo combate ao tráfico. Por esse motivo se faz necessária a observação da relação entre Estado e a população das comunidades carentes.

Está na percepção, por parte destes moradores, que a presença do Estado é precária e nas comunidades. E essa precariedade passa a ser um dos principais condicionantes para o grande crescimento de grupos de milicianos nestes locais. São nas muitas lacunas deixadas pelo poder público que os milicianos se encaixam, assumindo o papel do Estado na prestação de vários serviços à população, como segurança, fornecimento de gás e transporte (kombis, vans e moto-táxis), e cobrando impostos para isso. Os serviços não se restringem às necessidades básicas dos cidadãos. Há também a venda de sinais de TVs fechadas, através do desvio de sinal da SKY e NET (gatonet), e de internet de banda larga (gato-velox), aluguel de quitinetes e de espaços comerciais, exploração de bingos e máquinas caça-níquel, venda de botijão de gás e até mesmo empréstimos a juros (agiotagem).

Mas, não é somente em relação à prestação de serviços que as milícias desempenham o papel que caberia ao Estado fazer. Ela se estende também às atividades dos três poderes. As milícias criam suas próprias leis, as executam e julgam, punindo quem as contraria. As punições podem ir desde multas em dinheiro até torturas físicas, podendo chegar à execução de fato, sem o conhecimento do Estado, pois até o destino dos corpos fica a cargo do poder local. No entanto, cabe destacar que a visão de Burgos (2002) sobre a atuação da milícia se assemelha ao comportamento do cangaceiro – mesmo tendo uma visão distorcida da honra - na construção de seu hábito coletivo como grupo social. 

Muitas são as definições utilizadas para definir as milícias e sua atuação. Contudo, devemos evitar a confusão entre a atuação de milicianos em relação à “segurança” oferecida por eles nas comunidades em que atuam e a segurança privada, tal como um serviço oferecido por empresa de prestação de serviço. Existem inúmeras empresas que fornecem serviço de segurança em ruas da cidade do Rio de Janeiro. Isso é algo comum que pode ser feito via contrato legal ou de maneira informal.

O grande ponto em questão é que as milícias impõem seus serviços de “segurança” através da coerção exercida por eles nos territórios sobre seu domínio. Neste caso específico, não há direito à escolha, dependendo do bairro, uma vez que existem diferentes grupos de milicianos com distintos modos de atuação. Cano (2008) delimita o fenômeno das milícias através de algumas linhas de atividade para serem consideradas como tal. São elas:

1. O controle de um território e da população que nele habita por parte de um grupo armado irregular.

2. O caráter em alguma medida coativo desse controle dos moradores do território.

3. O ânimo de lucro individual como motivação principal dos integrantes desses grupos.

4. Um discurso de legitimação referido à proteção dos habitantes e à instauração de uma ordem que, como toda ordem, garante certos direitos e exclui outros, mas permite gerar regras e expectativas de normatização da conduta.

5. A participação ativa e reconhecida de agentes do estado como integrantes dos grupos  (CANO & DUARTE, 2012:132):
Este trabalho se insere no campo da historiografia social, em História Urbana, pois tem como base as políticas públicas, a presença do Estado nas comunidades carentes da cidade do Rio de Janeiro. O foco se dá na negligência e “substituição” do papel do Estado por grupos de milicianos, que passam a assumir o controle sobre a administração dos locais onde se instalam, embora não tenham a estrutura do Estado. Considera ainda as relações da população com o Estado, ou seja, com as políticas do Estado, e com os grupos que assumem este poder local e impõe suas “leis”, ou seja, sua política. Aliado a isso, a maneira como a mídia noticiou tais fatos na construção do imaginário que a maior parte da população tem sobre as milícias.

Como objetivo geral, neste trabalho, será analisado o surgimento e a grande expansão das milícias armadas na comunidade de Rio das Pedras, na cidade do Rio de Janeiro, buscando identificar as condições encontradas nessa localidade para a formação e dominação dessa nova modalidade de “segurança”. Entre os objetivos específicos estão: analisar o estágio atual da relação entre as milícias, o Estado e a população desta comunidade carente, administrada por estes grupos, e a construção dos discursos midiáticos sobre a atuação das milícias, através de análises de reportagens que ajudam a compreender este fenômeno social, utilizando como fontes o Jornal O Globo, no período de 2006 até 2014, através das quais pretendo alcançar o ponto de vista dos moradores da comunidade de Rio das Pedras, através de entrevistas, além das atitudes governamentais e a criação da imagem dos milicianos por parte da mídia. Em certa medida também para análises mais recentes pode ser usado o livro de Burgos (2002), uma vez que as pesquisas para sua confecção dão um panorama sobre a situação da favela Rio das Pedras.

O quadro teórico foi montado a partir da análise do início das atividades dos grupos milicianos, pois se conclui que estes, quando assumem a direção da associação de moradores de Rio das Pedras, passam a exercer um “rigoroso controle social na favela” (Burgos, 2002, p. 57), assumindo o poder na localidade. Faz-se então necessário explicar em que sentido os termos controle social e poder são adotados aqui, uma vez que serão de grande importância para o desenvolvimento da pesquisa. Ambas as noções são definidas de acordo com verbetes do Dicionário de política, organizado por Norberto Bobbio (2000), que foram escritos por autores distintos.
Para efeito de melhor organização das ideias começarei pelo segundo conceito apresentado. Seguindo a ampla apresentação feita por Mario Stoppino para o desenvolvimento do verbete poder, no dicionário acima referido, é aqui entendido como “a capacidade do homem em determinar o comportamento do homem: Poder do homem sobre o [outro] homem” (BOBBIO, 2000, p. 933). É importante salientar a distinção feita entre poder sobre os homens, que é o poder social, e o exercido sobre as coisas. O primeiro deles é uma relação social, ou seja, entre pessoas, enquanto o segundo se desenvolve a partir de relações de posse. Não obstante, o poder sobre as coisas é de fundamental importância, pois é ele quem cria as condições materiais necessárias para a indução do comportamento de indivíduos. Também é importante destacar que não será usado o conceito de poder no sentido oficial, mas extraoficial, uma vez que seu exercício em Rio das Pedras não se dá através de meios institucionais.

Apesar de a imprensa publicar que a milícia se constitui num Estado paralelo, como se fosse antagônica do poder oficial, neste trabalho será esclarecido que a relação entre Estado e milícia depende de alianças políticas. Se o poder oficial se encontra satisfeito com a milícia, a atuação em seu território acontecerá sem qualquer impedimento. Mas se o Estado fica insatisfeito promove a criminalização e faz uso da mídia para legitimar a perseguição aos milicianos.
Para a análise do início das atividades dos milicianos em Rio das Pedras, a principal fonte será a obra organizada por Marcelo Baumann Burgos (2002) A utopia da comunidade: Rio das Pedras, uma favela carioca. Esta obra será utilizada por ser uma das mais completas e pioneiras acerca da história da favela em questão, sendo fruto do que Burgos chama de um enorme esforço institucional, que envolveu o Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, no qual é professor e pesquisador, além de professores e alunos.
Apesar de ser um livro com foco sociológico, os pesquisadores acabam por fazer uma história da favela, inclusive entrevistando pessoas que participaram de sua fundação. É neste aspecto em particular que a obra será fundamental para o estudo deste período, pois através das entrevistas com moradores é que será buscado o olhar que estes lançavam sobre os acontecimentos em curso no final dos anos 1980. Além disso, há nesta obra entrevistas com pessoas que viveram em diferentes períodos, o que permite analisar as relações entre estas, os grupos milicianos e o Estado, ou a falta de relação com este, durante o crescimento da favela.
Através desta obra também pode ser apreendida a relação entre os grupos que impunham seu domínio na região e o Estado, a partir da narrativa por parte de moradores de conflitos, ou da falta deles, entre os milicianos e as forças regulares de segurança. Esta relação pode também ser percebida através das atitudes dos milicianos em suas tentativas de criarem uma ordem própria, um poder paralelo ao Estado, mas, ao mesmo tempo, dentro dos interstícios da estrutura estatal.
Para o estudo destes aspectos no período atual serão utilizadas as publicações on-line do jornal O Globo do período de 2006 até 2014, através das quais pretendo alcançar o ponto de vista dos moradores das comunidades, em especial de Rio das Pedras. Através de entrevistas é possível perceber as atitudes governamentais, assim como se deu a criação da imagem dos milicianos por parte da mídia.

Em relação à metodologia, cabe ressaltar que a ideia inicial era realizar uma pesquisa também com fontes de história oral, porque os moradores da região falaram sobre as práticas dos milicianos pedindo somente para não serem identificados.

Por fim, as hipóteses aqui verificadas são de que as milícias teriam surgido e se expandido em Rio das Pedras devido à negligência do poder público na comunidade, fazendo com que a população da localidade visse os grupos como seus salvadores num primeiro momento, aceitando-os como líderes. Este crescimento seria ainda ajudado por uma conivência do Estado em relação às ações desses grupos, uma vez que estes combatiam o tráfico que dominava a região.

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