segunda-feira, 24 de junho de 2019

Gilberto Freyre (1900-1987)


Estudar o que pensaram os intelectuais brasileiros acerca da formação da sociedade brasileira é fundamental para o entendimento das relações de poder que existem em nossa sociedade atualmente. A leitura da contribuição teórica do Gilberto Freyre nos torna capazes de olhar para a nossa história em relação ao processo que deu origem a quem somos hoje, enquanto sociedade. Ele nos ajuda a identificar os motivos pelos quais as pessoas se comportam de determinado modo quando se encontram em condições de desigualdade. Compreender a questão da democracia racial para Freyre nos faz pensar sobre como nos comportamos com as diferenças étnicas em nossa sociedade, por exemplo. E assim podemos refletir sobre como vivemos na atualidade com a diversidade étnica, tema tão importante e carente de ações que promovam a melhor forma de convivência entre os seres humanos.

Gilberto Freyre compreendeu o encontro das culturas europeia, africana e nativa como algo muito positivo, porque deu origem à cultura brasileira, cuja originalidade é resultado das trocas entre diferentes grupos sociais. E foi dessas trocas que surgiu uma sociedade autêntica, que vive em harmonia, porque os conflitos vivenciados não são suficientes para promover a desagregação da sociedade em sua totalidade. Essa compreensão de Freyre foi construída a partir de uma minuciosa pesquisa sobre o modo de vida tanto da casa grande quanto da senzala, com foco nas regiões do nordeste brasileiro.

Para o autor a colonização não foi feita pelo Estado, nem do indivíduo por iniciativa própria, mas da família. E essa forma de organização social corresponde à forma de produção econômica (canavieira). Nesse aspecto os nativos perderam, porque não sobreviveram com os elementos da sua cultura. Os escravos que conseguiram benefícios foram os que se adaptaram à cultura dos brancos.

Para ele o brasileiro não tem perfil para mandar, prefere obedecer. E isso tem a ver com o tipo de escravidão que foi implementado aqui, que teve a raça como critério e criou mecanismo de perversão entre dominantes e dominados. O mulato é o elemento mais dinâmico da formação da sociedade brasileira, porque traz em si a miscigenação racial e cultural. Nas sociedades onde não houve miscigenação houve conflito. Portanto o autor estava atento aos conflitos existentes de sua época, uma vez que estudou nos Estados Unidos, na universidade de Columbia e isso acontecia lá.

A miscigenação proporcionou ao povo brasileiro uma autenticidade na formação da sociedade, e isso é visto como uma vantagem nossa frente às formações clássicas (europeias) por parte de Freyre, diferente de Oliveira Vianna, que vê essa miscigenação como desvantagem e atraso. Freyre pensa a formação da sociedade patriarcal no Brasil e recusa a análise que se assenta sobre a explicação biológica. Seu modelo teórico tem como base a ação simultânea desses três elementos que formam a sociedade brasileira: patriarcado; etnias e culturas; trópicos. De acordo com sua visão a miscigenação não é só racial, mas também cultural, devido à atuação do patriarcado marcado pela indistinção entre o público e o privado. O papel do Estado foi secundário na formação da sociedade porque estava subordinado, como a Igreja, ao patriarcado. Ele identificou que as trocas entre as culturas e as etnias criou harmonia ao invés de conflito político. Nesse sentido o patriarcado contribuiu para a integração entre pessoas com diferentes visões de mundo e as desigualdades não assumiram um caráter político.

Para Gilberto Freyre a história de todo brasileiro é a história da Casa Grande. Embora tenha formulado seu estudo analisando a sociedade pernambucana, estende suas conclusões para toda a sociedade brasileira. A unidade orgânica de formação da sociedade para Freyre é a família patriarcal, que Oliveira Vianna chama de “clã”. Ambos os autores identificam que as famílias protagonizam as relações sociais em detrimento do escravo, que possui papel social secundário. Nessa realidade não se desenvolve o papel social de “indivíduo” enquanto cidadão que dá origem a sociedade. Para os dois, o Estado e a Igreja não desempenharam papéis significantes, porque eram subordinados aos proprietários rurais.

Freyre utilizou em seus estudos documentos que na época não eram considerados fontes para construir teorias sociais, tais como receitas, cartas e utensílios domésticos. Para ele há dois eixos explicativos: a discriminação entre os efeitos da herança racial e a influência social. Em suas análises considerou que a miscigenação representou um processo de correção da distância social entre a Casa e a Senzala, eliminando as possibilidades de conflito, porque aproximou ambos os grupos sociais, uma vez que atua como centro e ponto de apoio da coesão social, em todos os aspectos.

Diante do processo de modernização no qual se encontrava o Brasil, momento este em que seria possível haver a redução do poder político do patriarcalismo, o sistema encontrou em crise, mas o poder dos senhores não foi totalmente anulado. Entre a Casa Grande e a Senzala houve uma relação democrática em virtude da troca cultural entre as etnias.

Para Freyre não existe religião oficial. Existe é uma religião que se manifesta no cotidiano. Quando a República separa Igreja e Estado o ensino passa a ser laico. A igreja perdeu o poder de formar as consciências das pessoas e, por isso, reformula sua forma de atuação na sociedade, abrindo mão dos elementos originais, determinados pelo Vaticano.

Esse processo de transição foi marcado pelo fim do século XVIII e início do século XIX, momento em que a Metrópole passa a se preocupar com a Colônia. A centralização de poder realizada pela Coroa tem como objetivo limitar os poderes dos patriarcas, sem sucesso. Freyre se refere a uma mudança que atingiu todas as esferas da sociedade. Essa mudança proporcionada com a chegada da família real, em 1808, põe em xeque a família patriarcal, formada ainda na era colonial e segundo Freyre, original. Toda aquela capacidade de equilibrar antagonismo, de corrente do tipo de organização social estabelecida, é posta em xeque. Todo o mundo patriarcal é posto em xeque. É constatada a adaptação do mundo patriarcal ao mundo que surge com seu declínio: urbano e organizado, mas não em torno do senhor. O grande marco desse período é a chegada da corte ao Brasil, porque a casa patriarcal perde muito de suas qualidades e, a partir daí surge o conflito entre as classes.

Conforme o patriarcado entrou em decadência foram estabelecidas novas formas de subordinação. É a urbanização que altera o processo de formação da sociedade brasileira, mas a mudança, entretanto, não se faz pela ruptura. Os personagens do passado são atualizados, se acomodando ao novo processo. Gilberto Freyre constata que o sentido do processo de formação da sociedade brasileira mudou mais no campo teórico do que empírico, ou seja, na realidade concreta. No século XIX ocorreu a europeização de hábitos coletivos da população. Houve um aburguesamento da vida social. Nesse contexto, embora a casa ainda seja o eixo de formação da sociedade, as ruas não pertencem mais aos senhores porque se tornaram ambiente público (rua, praça, festa da igreja, escola). Essa sociedade original, face ao processo de mudança, corre o risco de se perder, em virtude da “ocidentalização”. Em lugares onde o indivíduo é a base da sociedade a família não tem a mesma importância, porque há predomínio do indivíduo enquanto cidadão. A mudança referente ao primeiro processo de urbanização que ocorreu aqui se deu por acomodação e não por ruptura.

2.2-Sobrados e mocambos: tese central construída em torno da raça, classe e religião.

Freyre montou um tipo ideal da população brasileira. A troca de culturas entre as diferentes etnias e o patriarcalismo possuíam aspectos que deram origem a configuração política brasileira. O Brasil se caracteriza pela ordem que tem origem no patriarcado, os conflitos que existem não são capazes de promover rupturas na sociedade, mas a sua integração, por esse motivo as mudanças sociais que acontecem no Brasil são por acomodação. Aqui se trabalha com oposições que convivem e não se excluem, por isso os antagonismos são equilibrados.

Foi a chegada da família real tornou possível o conflito entre senhor e escravo. Nesse contexto de mudanças a base da família patriarcal continua sendo a religião e a escravidão como força produtiva. A decadência do patriarcado além de não anular o poder dos patriarcas torna possível um conflito que não existia, porque o escravo foi substituído pela máquina.

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