sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Milícia e cultura brasileira.


Para entendermos um pouco da cultura brasileira e os aspectos da pessoalidade presente nas relações construídas entre milicianos e a população, utilizaremos alguns clássicos da sociologia brasileira que tentaram o explicar “o que faz do Brasil, Brasil”. Dessa forma, podemos tentar compreender a especificidade da relação entre população local e milícias.

No capítulo Homem Cordial, Sérgio Buarque de Holanda (1995) em seu livro “Raízes do Brasil” analisa a questão da cordialidade e pessoalidade, tão presentes na nossa cultura, como um traço muito importante para entendermos as relações sociais no Brasil. Ao deixar de lado o impessoal, agindo de acordo com a satisfação imediata, no plano da pessoalidade, é uma forma de trazer a intimidade da esfera privada para as diversas esferas da vida pública.

O problema da pessoalidade se localiza na discussão da separação entre o público e privado. A nossa cordialidade surge e se transplanta para a esfera política, tornando o Estado, assim, uma extensão do familiar. Assim sendo, a lógica utilizada pelos milicianos na construção de suas relações com a população local perpassa a cordialidade.
Se arvorando do fato de estarem “fazendo o bem para a localidade” ou se candidatando a cargos públicos utilizando o mote “candidato da comunidade” para justificarem suas ações nas comunidades em que atuam, percebemos como há uma invasão do espaço privado sobre o público, o que tende a pessoalizar ao extremo as relações entre milicianos e comunidade. Isso se constitui em um grande entrave para a formação de uma relação impessoal com o Estado.

Desde os tempos do Brasil Império até mesmo após a Proclamação da República, vemos que muitos cargos públicos ainda são dados a “pessoas de confiança”, sendo parentes ou amigos próximos dos dirigentes. Em uma sociedade pautada sob a égide do patriarcalismo e do patrimonialismo, o voto passa a ser um instrumento de barganha. O miliciano, “candidato da comunidade”, passa a ser a própria materialização do Estado na medida em que para os moradores dessas localidades o miliciano é quem faz a ponte com o Estado para que as melhorias cheguem até essas localidades. Entender esse traço da cultura brasileira via a figura do Homem cordial de Sérgio Buarque é importante para percebermos a cordialidade, marca da cultura brasileira, que se faz presente nas relações entre milicianos e comunidade.

O cenário político acaba por ser permeado por um caráter personalista e clientelista cujo Estado passa a atender interesses individuais, perdendo a concepção do Estado como lugar do público e impessoal. Tal característica reforça o clientelismo presente na conduta de muitos candidatos que concorrem aos cargos públicos.
Outro autor importante que nos ajuda a compreender esta característica brasileira é Roberto da Matta. “A Casa é a Rua” (1997) livro do referido autor busca compreender as pessoas, as relações sociais e as contradições de nossa sociedade através dessas metáforas. Neste caso, a casa e a rua não seriam tomados apenas por seus aspectos físicos, mas, principalmente, pelos sentidos e significados que vão muito mais além do que o sentido físico desses locais.

Os valores postos mudam de acordo com o ambiente em que o indivíduo esteja. O ambiente da casa seria o ambiente do diálogo e da compreensão; da pessoalidade e do “ser alguém”. A rua seria o espaço da impessoalidade, do tratamento igualitário, ou seja, onde as leis servem para todos. Local onde não somos “amigos de ninguém”, anônimos que devemos nos submeter a leis impessoais.

A ideia da dualidade entre “a casa e a rua” é interessante para pensarmos no acesso à cidadania em uma sociedade como a nossa que é pautada na relação que se tem com os outros. Em uma sociedade relacional como a nossa, os contatos que se tem é uma forma de entender a dinâmica social brasileira. No âmbito da rua, onde impera a impessoalidade, para se distinguir, os indivíduos evocam muitos símbolos que vêm de suas relações pessoais que os vão distinguir dos demais. Rico, filho de alguém, médico, estudante, militante: não importa qual seja o marcador. Alguma hora surgirá um elemento que o diferenciará da grande massa no reino da impessoalidade que é a esfera pública.

Da Matta observa que na nossa sociedade, o brasileiro compreende a si mesmo como cidadão, dotado de direitos por ser brasileiro. Contudo, esse exercício da cidadania se da num âmbito individualista, transportando os valores de casa, ou seja, da pessoalidade para a rua, impessoal. Dessa forma, é bastante frequente vermos que um sujeito defende sua comunidade muito mais por conta das relações pessoais que ela representa. Obviamente não é de forma altruísta, mas ele também obtém favores em troca.
As percepções de Sérgio Buarque (1995) e Da Matta (1997) nos fazem compreender que a dinâmica das relações sociais presentes na sociedade brasileira e que perpassam também o plano político se fazem compreender pelo viés da pessoalidade. A partir dessas ideias, podemos compreender a especificidade das relações entre milicianos e a população.  Só podemos conceber como se dá essa relação pautada na pessoalidade, mesmo em se tratado de ambientes públicos, ao compreender as características da sociedade brasileira.

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