terça-feira, 15 de outubro de 2019

Milícia é Estado paralelo?

Milícia é um Estado paralelo?

Luís Mir diz que “por mais organizada que seja e mais armas que detenha, a macrocriminalidade não dispõe dos elementos constitutivos do Estado” (MIR, 2004, p. 272), não sendo por isso, a milícia armada, um Estado paralelo.

As práticas dos milicianos em Jacarepaguá estão à margem da ordem jurídica instituída. Assim, a associação mobiliza diversas atribuições ao seu redor, desde clientelismo até uma atuação como aparato extraoficial.

Fazendo alusão a um exemplo citado por Burgos (2007:63), que um informante ligado à associação disse que a mesma ordenou o fechamento de um prostíbulo por achar imoral. 

Os nomes destes grupos que agem na ilegalidade apenas mudam, mas seus arranjos continuam a atuar na ilegalidade de suas ações, mas constituem um processo histórico de longa data, como compensação das políticas de Estado para a promoção de segurança pública. Esse controle do território, que passa a ser dominado militarmente, talvez seja uma das características mais importantes.

A denominação “Estado Paralelo” existe porque em alguns aspectos os grupos milicianos assumem papéis que caberiam aos poderes institucionais, tais como segurança  e o controle sobre o transporte destas localidades, entretanto, “por mais organizada que seja e mais armas que detenha, a macrocriminalidade não dispõe dos elementos constitutivos do Estado” (MIR, 2004, p. 272). Desse modo a milícia não se constitui num “Estado Paralelo”, porque embora os milicianos possuam integrantes que já se candidataram a cargos políticos, inclusive na comunidade em questão, que já teve até um representante eleito, as relações entre estes grupos e as comunidades por eles dominadas não se alteram. Estas continuam se estabelecendo através de práticas ilegais, independentemente de alguns líderes dos grupos fazerem parte do Poder Público oficial, com a finalidade de beneficiar a comunidade e, desse modo, assegurar o prestígio dos milicianos na região, o que torna possível o exercício de poder legítimo, ou seja, consentido.

Se a milícia não conquista a obediência da população pelo convencimento o faz pelo uso da violência, e com a permissão do Estado. Porque o território onde os milicianos atuam pertence ao Estado, que possui o monopólio do uso legítimo da violência, e se alguém, além do Estado, exerce a violência em seu território é com a sua permissão (Weber, 1946). Nesse sentido é muito evidente a relação entre a milícia e o Estado, em formato de aliança política.

Essas questões ressoam no que permite a formação, a ação da milícia, a nosso ver, seu lugar de policial – agente de segurança do Estado, suposto representante da Lei – disposto num espaço tão já marginalizado como é o da favela. Tanto é assim que algo falha ao caracterizar a milícia, na citação acima, enquanto “grupo armado irregular”. Nesse caso, ao se falar em irregularidade, há uma ênfase a questão de esses grupos estarem armados; no entanto, não há um destaque do lado criminoso disso, logo, ele se torna menos passível de punição. Vide a relação do Estado com a favela e os favelados.
Mesmo numa questão que envolve moradias em situação irregular, ainda assim, o favelado, por esse ponto, não é tido como criminoso – mesmo sabendo dos aspectos simbólicos e representações sociais que interpelam os moradores dessas áreas. “Neste sentido, a milícia coloca o Estado noutra relação com a territorialidade, com suas instituições e no que diz respeito a ele mesmo em sua função de articulador simbólico-político no processo de individuação dos sujeitos.” (COSTA, Grecyele, 2013, pg.241).
A questão da ilegalidade tem a ver com ser contrário à Lei e, portanto, ao Estado. Entretanto, é tênue a linha que separa irregular de ilegal. Essa relação entre ilegalidade e irregularidade, a princípio, passa a ser interessante apenas no campo semântico. Todavia, isso revela o quão complexa é a relação entre os diversos atores sociais com o Estado, pois muitos grupos de milicianos se estabelecem nas comunidades carentes impondo respeito a partir de práticas violentas e, mesmo muitos deles fazendo parte do aparato do Estado como policiais da ativa, subjugam ilegalmente espaços da cidade do Rio de Janeiro colocando os moradores sob seus mandos.
A ampliação de seus ‘negócios’, como a venda de sinal de TV a cabo pirata, os famosos “Gatonet”, monopólio sobre os transportes alternativos, o fornecimento de botijões de gás e o pagamento para ‘proteção’ contra assaltos revela um pouco dessa relação “comercial” que é ao mesmo tempo impositiva por trás da cobrança desses serviços.
A relação dos milicianos com moradores, no quesito à cobrança de taxas para obtenção de serviços de segurança ou de fornecimento de sinal de Tv a cabo, por exemplo, é tida por eles como uma prestação de serviço para a população local. Dessa forma, pelo menos no plano simbólico, acredita-se numa relação comercial entre prestador de serviço e cliente. Se há um serviço prestado, há a exigência do pagamento. 
Muitas vezes, o discurso muda ao utilizarem a palavra “colaboração” para se referirem à cobrança de taxas. Contudo, “colaboração” ou “cobrança” são formas simbólicas de se referirem ao pagamento da “taxa”. Como não há a possibilidade de recusa, isso contribui para que a imposição de taxas - uma extorsão dissimulada pela relação de assistência de mão-dupla - adquira muitos sentidos para expressar essa relação da milícia com o bairro.
Panfletos sobre o que tem acontecido no bairro, mostrando as melhorias que ocorreram depois da chegada desses grupos e cartazes com os serviços prestados pela Associação de moradores, por exemplo, são maneiras de mostrar que eles estão atuando no bairro, o que acaba justificando a cobrança das taxas. Tais discursos e ações da milícia acabam por desassociar a milícia da figura da polícia, pois ao darem detalhes sobre a segurança feita por eles no bairro, isso identifica um tipo de segurança específica: a segurança privada. Esse é um fator importante para que compreendamos a dissociação da figura do policial da figura do miliciano em relação à manutenção da ordem pública na favela.
Além disso, não é apenas no campo de “prestação de serviços” à comunidade que os milicianos têm expandido seus negócios. Eles vêm tentando cada vez mais ocupar espaços no Legislativo e Executivo, ampliando suas redes de atuação extrafavela. Entretanto, a Polícia Federal tem tentado impedir isto, prendendo alguns deputados e vereadores que são ligados às milícias da Zona Oeste, pois milicianos são considerados fora da lei, que coagem determinado território.
O medo provocado pelos constantes tiroteios nas comunidades, a presença de traficantes armados, agressões, a sensação de falta de segurança ajudou a culminar neste tipo de ‘solução’ por parte destes grupos. A negligência do Estado permitiu que grupos como estes surgissem nestas áreas denominadas como ‘áreas de risco’. É nisso que se observa este fenômeno da privatização da segurança. Em meio ao caos, estes homens armados dispostos, primeiramente, a proteger seus vizinhos sem estarem debaixo de um controle institucional devido ao uso das armas de fogo para a manutenção da ordem, nos deixa a mercê de um poder que sem a tutela do Estado pode muito bem ser abusado. Ao invés de agirem amparados pelo Estado para fazerem a manutenção da ordem, estes agem por conta própria para agirem pelo Estado.

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