sábado, 19 de outubro de 2019

Milícia e seu modo de controlar a favela.


Alba Zaluar, em seu artigo intitulado: Favelas sobre o controle das milícias no Rio de Janeiro pretende analisar o surgimento e expansão das milícias no Rio de Janeiro que controlam determinados territórios de favelas, comparando estes com o domínio exercido por facções de traficantes em outras favelas.
Antes de falar das milícias propriamente, aquelas que são amplamente noticiadas nos veículos de comunicação, Zaluar faz uma breve abordagem Histórica para dizer que o uso do termo milícia como utilizamos hoje em dia é equivocado, de acordo com o estudo deste termo ao longo da história mundial. 

Mas milícia é comumente usada para designar uma força militar composta de cidadãos ou civis que pegam em armas para garantir sua defesa, o cumprimento da lei e o serviço paramilitar em situações de emergência, sem que os integrantes recebam salário ou cumpram função especificada em normas institucionais. Podem ser tanto os que exercem a atividade de defesa de uma comunidade (pessoas, propriedades e leis) como os homens habilitados a cumprir esta atividade e que podem ser chamados a usar armas em tais situações. Esse conjunto de pessoas pode também ser chamado de Guarda Nacional ou Forças de Defesa do Estado, em geral terrestres. (Zaluar, 2007, p.90)


 A referida autora cita alguns exemplos de países e seus significados do que é milícia. Na Inglaterra, as milícias nos tempos anglo-saxões se encarregavam de manter a ordem e proteger a localidade, e eram compostas por todos os homens capazes de lutar. Entretanto, com o fim do feudalismo, uma força de homens portadores de armas com garantias constitucionais, milícia tornou-se outra força militar cuja atuação poderia ser contra um monarca tirânico na defesa pelas liberdades civis.
Na Suíça, que não tem exército nacional profissional, é o exército oficial de reserva composto por cidadãos soldados. Na Austrália, milícias são unidades de reserva do Exército, esse seria o nome alternativo. No Canadá, milícia se referia tanto ao Exército regular/profissional quanto o de reserva. Só depois de 1940, que milícia passou a ser tropa de reserva. Zaluar (2007) ainda nos dá mais exemplos utilizando como referência: Cuba, Ex- União Soviética, China e França para mostrar os diferentes sentidos que a ‘milícia’ toma nestes respectivos países. Contudo, no Brasil, este termo também tem seu significado próprio.

Milícia refere-se a policiais e ex-policiais (principalmente militares), uns poucos bombeiros e uns poucos agentes penitenciários, todos com treinamento militar e pertencentes a instituições do Estado, que tomam para si a função de proteger e dar “segurança” em vizinhanças supostamente ameaçadas por traficantes predadores (ZALUAR, 2007,P.90)

Milícia já teve diversos significados, antes de chegar a este que é amplamente concebido e também divulgado na mídia. Desde moradores não pagos encarregados pelos vizinhos de fazerem a segurança da área, ou aqueles que são pagos, ou seja, uma espécie de vigilantes, e até os ex-policiais. Todavia, segundo Zaluar (2007: 91), somente os que são moradores vigilantes são considerados o que se chama de milícia pelo mundo afora. 
As milícias daqui, segundo a autora, são compostas por agentes e ex-agente de segurança do poder oficial, não podem ser consideradas paramilitares, pois estas abusam do poder e treinamento que fora concedido pelo Estado. Esse excesso possui como finalidade a manutenção da ordem legítima. Esse grupo faz de sua obrigação da manutenção da ordem um negócio muito produtivo à custa de uma população pobre, trabalhadora e marginalizada, com acesso precário aos benefícios vigentes na cidade formal. Estes são os novos milionários da tragédia da segurança pública. O relatório final da comissão parlamentar de inquérito – CPI das milícias – destinada a investigar a ação de milícias no âmbito do estado do Rio de janeiro em 2008 refere-se à milícia como:

grupos de agentes do Estado, utilizando-se de métodos violentos passaram a dominar comunidades inteiras nas regiões mais carentes do município do Rio, exercendo à margem da Lei o papel de polícia e juiz, o conceito de milícia consagrado nos dicionários foi superado. A expressão “milícias se incorporou ao vocabulário da segurança pública no Estado do Rio de Janeiro e começou a ser usada frequentemente por órgãos de imprensa quando as mesmas tiveram vertiginoso aumento, a partir de 2004”. Ficou ainda mais consolidado após os atentados ocorridos no final de dezembro de 2006, tidos como uma ação de represália de facções de narcotraficantes à propagação de ―milícias‖ na cidade. (CPI, 2008, pg. 34)

Há um discurso comumente aceito que pensa que o policial, na figura do miliciano, é um justiceiro. Tal fala conota para a ilegalidade cometida pelo policial que enquanto autoridade pode atribuir um significado de violência legítima a tal feito. Como o Estado é o único que detém o monopólio legítimo da força, segundo Max Weber, a ordem da legitimidade acaba por se sobrepor à legalidade ou não da ação. Todavia, a legitimidade dada em relação à milícia se dá a partir de outro lugar, dependendo das relações que produzem esses significados.

São eles: i) o de que, em certa instância, essa denominação recobre a violência policial ao dar outro nome à polícia, ou seja, desvincula milícia da Instituição Polícia; ii) por outro lado, é o lugar de policial que configura e sustenta o sentido de milícia enquanto protetora; iii) todavia, tem sua prática associada a grupos criminosos, é então significada como criminosa, um desdobramento da polícia e, por fim, iv) a existência da milícia está ligada a um espaço material político-simbólico determinado: a favela, pois é a partir desse espaço que ela tem sua prática instaurada. Esses quatro pontos, que sinalizam sentidos para milícia, levaram-nos a pensar sobre a construção discursiva dos referentes não só na relação com essa denominação, mas com outras que são mobilizadas no decorrer das análises, visando compreender o processo de produção de efeitos de evidência posto em movimento por diferentes sujeitos, em distintos discursos. (COSTA, Greciely, 2011, pg.4)


Grupos de ex-policiais agindo pela ‘justiça’ de uma forma ilegal não é algo que faz parte apenas do ethos de grupos de milicianos que atuam hoje em dia nas favelas do Rio de Janeiro. Entre as décadas de 60 e 80, os chamados grupos de extermínio estavam em alta na Baixada Fluminense e na Zona Oeste, onde havia a predominância de muitos migrantes nordestinos. Podemos citar, como exemplo, a favela Rio das Pedras. 
Segundo Burgos (2002), os tais ‘justiceiros’ que começaram a aparecer tinham práticas muito parecidas com as dos Cangaceiros na construção de seu ethos de grupo.  Tal visão de justiça está inserida nos moldes da Lei de Talião – olho por olho, dente por dente - e do sacrifício de sangue. A realização da justiça com “as próprias mãos”, usando de arbitrariedade foi justificada pelo combate ao tráfico. As ações dos milicianos, em relação ao consumo de entorpecentes, se localizavam entre a prática do uso da força física e a exclusão da vida na comunidade.
Burgos faz alusão entre a desarticulação dos ‘cangaceiros’ à ascensão das lideranças atuais frente à associação, que segundo o imaginário dos moradores, por utilizarem outros critérios para a manutenção da ordem, proporcionam maior sensação de segurança para os moradores.

A percepção de que a associação sucedeu aos “cangaceiros” também é favorecida pela coincidência cronológica, pois, mais ou menos ao mesmo tempo em que os “cangaceiros de Rio das Pedras” estavam sendo desarticulados, as atuais lideranças chegavam à frente da associação de moradores. É preciso mencionar, contudo, que a trajetória das lideranças atuais também foi impulsionada por sua destacada atuação no socorro às vítimas da enchente de 1996, que trouxe enormes prejuízos aos moradores de Rio das Pedras. Como disse um deles: “eu tomei conta dos desabrigados aqui no colégio e a associação de moradores não tinha nenhuma estrutura para tomar conta. “Nós apanhávamos os velhinhos dentro das casas, tudo alagado, e saíamos de casa em casa pedindo comida para os outros. (BURGOS, 2002, P. 63)

No imaginário da população, a milícia veio substituir as antigas lideranças na função de controle social, mas estes com critérios mais transparentes que os grupos de extermínio, proporcionavam mais confiança e sensação de segurança nos moradores. Os próprios moradores dizem que hoje em dia “só quem faz besteira, some”. Essa imagem de substituição foi reforçada pela coincidência de datas da saída dos “cangaceiros” e da chegada das novas lideranças. Estas, por sua vez, ganharam grande notoriedade dentro da favela devido ao seu trabalho de socorro às vítimas da enchente de 1996. “Nem sequer entre os moradores das áreas controladas por estes grupos é possível inferir uma definição consensual do que seja uma milícia.” (CANO E LOOTY, 2008, pg. 59)
Ao que indica as pesquisas sobre o tema, a segurança de Rio das Pedras está a cargo de policiais que moram ou frequentam a favela, que mobilizam colegas para coibir práticas consideradas indesejáveis. Como o fechamento de um prostíbulo, ordenado pela associação, que o considerou imoral. Como se trata de um território informal, o ordenamento jurídico não é a regra, sendo as atitudes da população regidas por uma moralidade local, na qual se apoiam essas lideranças.
Greciely Costa (2013) em seu artigo “a milícia e o processo de individuação: entre a falha e a falta do estado” explicita a discursividade que enuncia a forma pela qual a milícia é identificada em discursos sobre ela. Isso nos faz compreender a linha tênue que permeia os discursos sobre a ilegalidade, legalidade e legitimidade das ações desses grupos, que obviamente funciona sempre a partir de um determinado lugar. Se o sentido político permeia a questão sobre a legalidade e ilegalidade dessas ações, o que passa a estar em jogo são os sentidos de ordem e segurança e, por outro lado, os sentidos de desordem e insegurança presente nos discursos sobre a milícia. 
A manutenção de uma suposta ordem, alheia à estabelecida pelo poder oficial, tem sido mantida na favela pelos milicianos, através da associação de moradores, a qualquer custo. Ao contrário do que tem sido difundido na comunidade Rio das Pedras, tanto por representantes da associação quanto por moradores, acerca da ordem pública, o que houve lá foi a substituição de alguns criminosos, que realizavam furtos, por uma milícia organizada com fins lucrativos e políticos, via práticas assistencialistas.
Segundo Zaluar (2007), há diversidade entre milícias, principalmente na maneira de atuação destes grupos. Uma das justificativas é a diferença social entre tais locais, no momento de expansão das milícias, que esbarraram em territórios disputados por facções do tráfico de drogas cujos hábitos sociais vão a desencontro ao dos milicianos, como o uso de drogas, que é veementemente proibido por estes. Esta justificativa, atrelada à falta de ligação dos milicianos com a comunidade que desejam dominar, forma o que se convencionou chamar de milícias, em oposição ao que a autora denomina polícia mineira na associação, representada por Rio das Pedras.
 A autora utiliza alguns exemplos como o dos bailes funk, para dizer que existem comunidades que não aceitam estes bailes e outras o estimulam. As rondas pela comunidade também possuem diferenças, em alguns lugares estes grupos fazem ostentando armas e toucas ninjas, enquanto em outras não.
Atualmente o código de conduta exigido pelos milicianos é aceito e internalizado pelos moradores, seja por medo de represálias ou por falta de alternativa; logo, já não são mais necessárias tantas demonstrações de poder. A “paz” obtida foi através de derramamento de sangue. Tanto que em Rio das Pedras, a autora diz que a figura da truculência que permeava as ações de legitimação dos milicianos permanece até hoje no imaginário não apenas dos antigos moradores, mas dos novos também. 
É claro que essa suposta “paz” que os milicianos trouxeram ao proteger estas comunidades do domínio do tráfico de drogas não foi desinteressada.  Estes grupos subjugam a comunidade local, não se constituindo como uma alternativa para o controle democrático da criminalidade e da violência, o que significa o não estabelecimento de uma segurança realmente pública em favelas.
Quando os habitantes de Rio das Pedras afirmam viver numa região onde existe “paz”, se referem à inexistência do tráfico de entorpecentes. Situação essa que “garante” a segurança dos mais jovens. O que essas pessoas não percebem é que se encontram alienadas dos seus direitos enquanto cidadãs, no sentido estrito do termo.
Na prática, a distância entre o que se tem direito no Brasil e o que se conquista, no cotidiano, tem se traduzido em obstáculo para o exercício da cidadania. Como observaram Anthony e Elizabeth Leeds (1978), os habitantes das comunidades carentes não se identificam com as instituições políticas vigentes, não nutrem expectativas em relação ao futuro . No caso de Rio das Pedras a expectativa dos moradores existe não em relação à ação do poder público, mas da associação de moradores, sua única opção, controlada por um grupo de milicianos que exercem poder em nome da manutenção da ordem pública na região.
As práticas violentas dos milicianos, que teriam expulsado o tráfico, são sustentadas por comerciantes e moradores. Embora não ocupem fisicamente a sede da associação de moradores, os milicianos a controlam e são responsáveis pela manutenção da ordem na comunidade. Segundo Burgos a associação de moradores é a única possibilidade de associação política na região.
A construção do poder dos milicianos de Jacarepaguá tem na força física sua sustentação. Ao expulsar o tráfico nas regiões onde se estabelecem, as milícias criam regras. A manutenção da ordem pública proporcionada aos moradores e comerciantes consiste na adaptação às regras cuja aceitação não é unânime. Na favela Rio das Pedras há subáreas periféricas  onde “toda tentativa de se criar outra associação na favela tem sido neutralizada pela ação persuasiva e às vezes coercitiva do centro político da favela” (BURGOS, 2002, p. 58). 
A milícia armada sabe que não possui o monopólio legítimo do uso da força física porque este pertence ao Estado e por isso almeja o poder político. Como demonstra a eleição do o ex-presidente da associação de moradores de Rio das Pedras, Josinaldo Cruz, vereador pelo PFL , devido ao prestígio da comunidade que não tem traficante. 
Ao perceber não apenas o potencial eleitoral, mas a real possibilidade de se elegerem candidatos da favela, Nadinho, sob o discurso da necessidade de representação da favela no governo como meio de alcançar as reivindicações e sanar as carências locais, candidatou-se a deputado estadual em 1998. A aposta foi certa e o candidato obteve 3.264 votos, tornando-se suplente pelo PT do B. Em 2000, tentou nova candidatura, dessa vez para o cargo de vereador, e, ainda, pelo PT do B, obteve 8.085 votos, sendo mais uma vez suplente. (ZALUAR, 2007, P.94)

Esses resultados obtidos foram através de uma campanha de regularização e transferência de títulos de eleitor, já que a maioria de Rio das Pedras é composta por migrantes nordestinos, e cujo objetivo claro era eleger Nadinho. Para tanto, foi utilizada a seguinte estratégia: pessoas ligadas à associação de moradores andavam pela comunidade explicando o porquê de ter um representante de Rio das Pedras no Legislativo. 
O discurso era sobre basicamente os problemas da região: a comunidade precisava de saneamento básico porque se encontrava abandonada pelo poder público, por isso seria necessária a existência de alguém no governo para lutar por condições dignas. E se essa pessoa fosse alguém da comunidade, que entende os problemas da região, seria melhor. Com argumentos dessa natureza os milicianos conquistaram os eleitores. A negligência do poder público diante das necessidades básicas da região favorece a atuação da milícia no plano ideológico. Além disso, depois de convencidos, havia Kombis que os levariam para o TRE a fim de regularizar a situação eleitoral. Após a eleição de Nadinho de Rio das Pedras, em 2004, é que se iniciou a grande expansão de milícias.
Segundo Alba Zaluar: 

A campanha deu certo. Segundo o mesmo informante, foram tirados de 20 mil a 30 mil títulos e nas eleições de 2004, Nadinho - recém-filiado ao PFL e com o apoio do prefeito César Maia -, elegeu-se vereador, com 34.764 votos, conquistando 24% dos votos válidos da 179º zona eleitoral (Jacarepaguá) e 86% dos votos válidos da Escola Municipal de Rio das Pedras. (ZALUAR, 2007, P.94)

Se num primeiro momento foi interessante para os moradores das comunidades que, aterrorizados pelas práticas e conflitos dos traficantes, que os milicianos assumissem o controle da região, com a finalidade de conduzir as comunidades à sua normalidade. Após a expulsão dos traficantes pelos milicianos, o que se verifica é que a liderança dos milicianos tornou-se oportunista. Os integrantes da milícia armada não lutam por uma causa. Suas ações almejam o acúmulo de dinheiro e poder político, a partir da exploração de atividades ilegais nos lugares onde se instala. Sob o império do medo, moradores e comerciantes se veem submetidos às imposições.
As práticas assistencialistas dos milicianos, concretizadas pela associação de moradores em Rio das Pedras, têm se traduzido num meio de alcançar o poder político, como fez o vereador eleito pela comunidade. Nesse contexto é fundamental o reconhecimento de que isso ocorre pela negligência do poder público em relação às regiões onde surgem candidatos com uma base assistencialista um pouco mais estruturada, que resulta na expressão da vontade popular, ter um conhecido seu no poder. 

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